Trabalho e profissão: significados em evolução
Vivemos numa sociedade em que o trabalho e as profissões têm
uma importância fundamental na nossa própria definição enquanto indivíduos.
De facto, é difícil imaginar alguém na idade adulta sem que
a questão da actividade profissional seja equacionada: não é por acaso que uma
das primeiras perguntas que fazemos sobre outra pessoa é “o que faz na vida?”.
Este “fazer na vida” é o denominador central do nosso
conceito social da pessoa, determinando todos os juízos de valor que
posteriormente venhamos a fazer sobre ela. E nesta matriz valorativa pesa não
só o facto de se trabalhar ou não, como também a profissão que se tem. Apesar
de ainda se usar muito o lugar-comum de que “todos os trabalhos são dignos”, a
verdade é que uns são mais dignos que outros (como bem sabe a nossa comunidade
emigrante).
É curioso constatar a evolução que o significado social do
trabalho sofreu ao longo do tempo. Enquanto que em plena Idade Média o trabalho
era visto como algo penoso e pouco digno (reservado à classe servil), com a
ética protestante surgida com o calvinismo o trabalho transforma-se numa forma
de colaboração com Deus na obra da Criação. Evolui-se assim para uma concepção
virtuosa, em que as actividades intelectuais e criativas passam a incorporar o
conceito de trabalho.
Com o advento da Revolução Industrial, o trabalho adquiriu o
seu sentido moderno, enquanto esforço necessário para o alcance de um melhor
nível de vida e da respectiva dignidade social. O trabalho assume assim uma
condição de actividade emancipadora do Homem, numa perspectiva claramente
antropocêntrica.
O trabalho é actualmente visto como uma condição essencial
de valorização do papel do indivíduo na sociedade, através da atribuição de
“utilidade social percebida” (pelos outros membros da comunidade). É por isso
que o estatuto de “desempregado” gera tantos anticorpos entre nós, o que
justifica a existência de uma larga franja de “desemprego envergonhado”.
Enquanto que o trabalho voluntário é visto como algo respeitável, estar
desempregado é algo que é visto com um misto de pena e desconfiança, que está
claramente associado ao rótulo de “inutilidade social”.
O trabalho assume-se pois como peça central dos papéis
sociais, mas, nas sociedades desenvolvidas,
cada vez menos pela sua relevância económica e cada vez mais pela
sua relevância contributiva.
Por outro lado, a evolução social e económica das últimas
décadas veio mudar radicalmente o papel do trabalho e dos trabalhadores nas
sociedades mais desenvolvidas.
O papel de quem trabalha nas sociedades pós-capitalistas
Vivemos numa época de mudança turbulenta, em que a evolução
tecnológica crescente, em paralelo com a progressiva queda de barreiras
comerciais, conduziu-nos a um mundo cada vez mais globalizado. Neste novo
mundo, todos tendemos a ter acesso ao que se passa em qualquer ponto do globo
e, consequentemente, tendemos a ser potencialmente afectados por tudo aquilo
que se passa em qualquer ponto da “aldeia global”.
O desenvolvimento exponencial das novas tecnologias de
comunicação e informação, com o advento da Internet e da “revolução digital”,
levou ao emergir de uma Nova Economia, em que a criação de valor já não depende
da criação de produtos inovadores (facilmente imitáveis em cada vez menos
tempo), mas sim na permanente inovação nas formas de satisfazer o cliente -
cada vez mais através da vertente relacional, apelidada no mundo dos negócios
de “excelência de serviço”.
O desenvolvimento económico e a evolução concorrencial dos
mercados livres é já tão rápida que as próprias empresas da “Nova Economia”
foram já forçadas a repensar o seu posicionamento no mercado. A crise das
empresas “dot com”, com a queda brusca e inesperada da sua cotação em bolsa, em
virtude de maus resultados de negócio e de grandes dificuldades de retorno do
capital investido, levou a que apenas as melhores sobrevivessem. O mercado
acabou por demonstrar que a “Nova Economia” era afinal apenas mais um canal de
distribuição da “Velha Economia”.
Por isso mesmo, no contexto actual já não basta às empresas
dar resposta adequada às exigências que surgem do meio envolvente: é necessário
que consigam antecipar essas mesmas exigências e necessidades. Assim, a
necessidade central das organizações passa presentemente pela sua flexibilidade
organizacional e pela sua capacidade de inovar, o que faz com que o
papel das pessoas nas organizações assuma um novo protagonismo, uma vez que é
delas que dependem em grande parte as novas valências organizacionais. Os
trabalhadores das empresas pós-capitalistas são valorizados fundamentalmente em
função da sua capacidade de adaptação à mudança, do conhecimento que possuem e
do conhecimento que podem vir a criar.
Desta forma, as capacidades de pensar e aprender passam a
ser as suas principais ferramentas de trabalho, ajudando a organização a gerar
respostas adaptativas. Ironicamente, é no seio das sociedades capitalistas que
se cumpre o sonho marxista: os trabalhadores são finalmente os verdadeiros
detentores dos factores de produção (conhecimento e capacidade de inovação)!
Neste novo cenário, em que o mundo do trabalho é cada vez
mais complexo e imprevisível, menos regulado ou seguro mas mais criativo, a
competência profissional deixou de ser um conceito estático para ser um activo
em permanente aquisição e renovação, em que a formação ao longo da vida assume
uma importância cada vez maior.
Apesar da mudança da sua natureza e do seu peso nas relações
entre os diversos actores do processo produtivo, o trabalho não deixou no
entanto de ser o veículo fundamental para o alcance de três tipos de
objectivos:
- Económicos
– numa perspectiva mais conservadora, o trabalho permite alcançar a
“segurança económica”, tão valorizada pelas gerações do pós-guerra; numa
perspectiva mais materialista e individualista, o trabalho permite ganhar
mais dinheiro, logo ter mais bens e ostentar mais sucesso (numa óptica
amoral de que “somos o que temos”, em vez de “sermos o que fazemos”);
- Sociais
– o trabalho potencia não só o estabelecimento de relações humanas mais
diversificadas e ricas (sendo que, em alguns casos extremos, são as únicas
relações sociais estabelecidas fora do núcleo familiar), como também
condiciona um determinado estatuto social (em função da valorização
que os outros façam da profissão desempenhada);
- Psicológicos
– o trabalho é uma via (por vezes a única...) de desenvolver níveis
satisfatórios de auto-estima, de afirmação pessoal, de sentido de
utilidade, em suma, de identidade (o trabalho é pois visto como um veículo
de criação de significados na nossa vida).
Esta importância do trabalho no cumprimento de objectivos
significativos de vida faz com que ainda hoje o mesmo assuma um papel central
na sociedade, o que é particularmente notável se atendermos a que a sociedade
actual é uma sociedade cada vez mais orientada para o lazer e não para o
trabalho. Vive-se actualmente numa “cultura de facilidade” e vez de se procurar
alcançar uma “cultura de felicidade”. E a felicidade, como tudo o que vale a pena
na vida, implica esforço e persistência...
O aumento da oferta dos bens de fruição, bem como do acesso
à cultura e ao entretenimento poderiam levar a pensar que o trabalho perderia
gradualmente esse seu papel central. Todavia tal não aconteceu, uma vez que a
sociedade do lazer é igualmente uma sociedade de consumo (que exige poder de
compra). Desta forma, o trabalho evoluiu de um cenário de centralidade
para um quadro de referência onde impera a polaridade, ou seja, apesar
de continuar a ser um instrumento potente de autonomia e afirmação social, pode
e deve ser complementado com outro tipo de actividades enriquecedoras,
como as actividades de lazer, culturais ou até a própria fruição da família.
E curiosamente, estudos recentes salientam precisamente a
família como o único valor que se sobrepõe ao trabalho em termos de
importância...
Esta nova ética de vida, em que o balanceamento das diversas
dimensões da nossa existência é garante de qualidade de vida, não é ainda, em
muitos casos, confirmada na prática, o que evidencia uma distância entre o que
os cidadãos valorizam e a forma como a sociedade e as organizações funcionam.
Uma nova gestão de vida
Vivemos hoje em dia num contexto de grandes contradições
entre as possibilidades que a sociedade oferece e o estilo de vida
que escolhemos para nós próprios.
A evolução socio-económica permite-nos (pelo menos a partir
de um determinado patamar de capacidade financeira) ter acesso a um vasto
conjunto de oportunidades de desenvolvimento, seja ao nível da oferta cultural,
seja ao nível do simples lazer e aproveitamento de tempos livres, o que deveria
traduzir-se num aumento visível da nossa qualidade de vida.
No entanto, em muitos casos, a qualidade de vida é
confundida com simples aumento de capacidade de posse, traduzida em
sinais de maior conforto material, por via da aquisição de bens materiais e
equipamentos cada vez melhores e mais caros. Parece assim que, quando
finalmente nos podemos libertar da “ditadura da subsistência”, caímos
ironicamente na “ditadura da opulência” (ou, no mínimo, da ostentação).
Este tipo de ditadura não deriva já da clássica luta de
classes, mas sim de uma verdadeira espiral de apelos ao consumo, fruto de uma
sociedade cada vez mais hedonista e muito pouco solidária. Neste tipo de meio,
é fácil cairmos numa verdadeira “armadilha de vida”, que é a de nos dedicarmos
de tal forma à profissão, perseguindo o
tão almejado “sucesso na carreira”, que não nos sobra tempo para sermos pessoas
em toda a sua plenitude.
E ser uma pessoa em toda a sua plenitude implica o exercício
da cidadania - com tudo o que se espera de participação nas diversas facetas da
vida em comunidade -, o exercício dos papéis de pais e educadores (enquanto
agentes centrais da transmissão de valores), o assumir do papel de filhos
presentes (no acarinhar de uma existência que existe para lá do fim da vida
profissional e que não deve ser desprezada, ignorada ou simplesmente remetida
para os cuidados paliativos de instituições distantes).
Como podemos constatar, ser uma pessoa completa implica que
possamos realizar-nos, atribuindo significado a outras dimensões da vida
(família, comunidade, afectos, saúde, etc.), por via da nossa participação
activa nessas dimensões. E o que muitas vezes acontece é que as pessoas
abdicam de muito do seu tempo a favor do trabalho, desequilibrando o seu
próprio desenvolvimento sustentado enquanto seres humanos.
Não é por isso de espantar que muitos bons profissionais, ao
terem de lidar com a situação de reforma ainda “jovens”, se sintam perdidos,
sem saber o que fazer às décadas de vida que é suposto ainda terem pela frente.
É fácil cair em situações depressivas quando subitamente se toma consciência de
que deixámos os filhos crescer sem darmos por isso, e que os mesmos são hoje
para nós pouco mais do que uns “estranhos afáveis”, que assumem para connosco
algumas “obrigações familiares” (quando há tempo para isso, claro).
É perfeitamente compreensível que a auto-estima se vá
gradualmente erodindo quando subitamente percebemos que a única competência que
desenvolvemos ficou fechada na gaveta da nossa profissão. Quando a única opção
que nos sobra é a de ver televisão, na esperança que os filhos ou netos se
lembrem de nós ao fim de semana. Quando de repente nos vemos destituídos de
finalidade ou sentido, porque já não temos ninguém de quem cuidar, nada para
criar, nenhuma responsabilidade pela qual responder.
E uma vida sem essa componente criativa ou generativa é
percepcionada como uma vida estéril.
Da falta de sentido à inacção é apenas um passo... e muitos
desistem assim de viver a sua vida.
No entanto, esta via de alienação em prol do sucesso não é
certamente uma inevitabilidade. O desenvolvimento da nossa sociedade também
potencia outro tipo de apelos, bem mais animadores.
A sociedade da informação e a crescente tendência para o
acesso à educação tenderá inexoravelmente (e apesar de alguns recuos
conjunturais no passado recente), para a criação de uma opinião pública mais
esclarecida e exigente, logo para uma sociedade mais equilibrada e responsável.
O acto de consumir funcionará, só por si, como um regulador de mercado, que
passa a ser uma expressão de poder resultante do somatório das opções
individuais de todos os cidadãos.
Este fenómeno não é uma utopia, pois já hoje acontece, sem
que nos apercebamos da sua verdadeira força. Só isso explica como a emergência
dos temas ambientais ganhou força e poder de influência nas últimas duas
décadas, condicionando fortemente o poder político e os agentes económicos.
Ora esta capacidade de sermos cada vez mais exigentes com a
sociedade em que nos integramos reflecte-se também ao nível da exigência que
temos de ter também connosco. É por isso que tenderemos (por muito que o
processo evolutivo seja longo ou doloroso) a questionar o sentido da nossa
actividade profissional e do nosso papel nas organizações onde passamos a maior
parte do tempo.
Sabemos qual o nosso contributo para a organização? E o
contributo da organização para a sociedade? Sem termos estas questões básicas
respondidas, é difícil atribuirmos significado ao que fazemos no trabalho...
Somos valorizados em função dos nossos saberes e
competências, ou apenas em função da nossa capacidade de obedecer a ordens?
Esta questão despoleta outro problema latente em Portugal, que é o fosso entre
a prática empresarial e os paradigmas da sociedade pós-capitalista em que já
nos inserimos (na qual o primado da criatividade e da gestão do conhecimento
são condições essenciais de competitividade).
A nossa herança milenar, de uma cultura normativa e centrada
nas relações de poder – típica dos povos da Europa do Sul -, convive mal com a
necessidade de livre pensamento, tolerância ao erro, empreendedorismo e
capacidade para assumir riscos (competências fundamentais nas empresas que
queiram vencer o desafio do sucesso sustentado numa economia turbulenta).
A responsabilidade de criar um ambiente favorável à criação
de valor por via do capital humano não depende assim só de quem trabalha, mas é
acima de tudo uma responsabilidade dos empresários e gestores, que têm a
capacidade de intervir nas políticas e práticas empresariais no seu todo
(envolvendo naturalmente os colaboradores no processo de mudança).
Temos pois de ser capazes de criar empresas
organizacionalmente mais “ecológicas” - porque preocupadas em interagir
harmoniosamente com o meio externo por via da gestão sustentada dos seus
recursos internos (e o recurso essencial são as pessoas). No entanto, não nos
esqueçamos que não há empresas ecológicas sem pessoas saudáveis, e isso só se
consegue se essa filosofia ecológica se aplicar à sua gestão de vida.
Uma pessoa só é feliz e produtiva no trabalho se for feliz e
produtiva nas outras dimensões da sua vida. Para isso, há que arranjar tempo
(esse recurso tão escasso e precioso) para criar laços afectivos, desenvolver
actividades comunitárias, criativas, artísticas ou quaisquer outras que ajudem
ao desenvolvimento de pessoas equilibradas e realizadas. De pessoas com
identidade e sentido de vida pleno.
Arranjar esse tempo é uma responsabilidade partilhada: por
um lado, das organizações, que devem dar “espaço temporal” aos seus
colaboradores; por outro, de todos nós, que muitas vezes teremos que assumir
uma perspectiva crítica sobre a vida que levamos, optando por desenvolver
estratégias de vida que nos ajudem a ser felizes nos tempos complexos em que
vivemos.
...e essa opção ninguém pode tomar por nós.