I – Ética: mais uma buzzword?
Ética: eis um termo quase omnipresente nos tempos que
correm.
Desde há muito que já era politicamente correcto falar de
ética, sendo frequente a sua menção em seminários, colóquios e conferências, fluindo
por um manancial de bem intencionadas declarações de princípios.
No entanto, desde que este conceito começou a impactar de
forma dolorosa nos negócios e, consequentemente, nas poupança e no bem estar de
muitas famílias, a ética passou a ser um imperativo incontornável nas economias
modernas.
Quem não se lembra do escândalo da Enron, da World.com ou da
Xerox? Quem não se lembra como uma das mais prestigiadas firmas de consultoria
e auditoria do mundo desapareceu em poucas semanas devido a este escândalo?
Efeito devastador deste mundo globalizado em que vivemos, devido ao qual
excelentes profissionais viram o seu emprego ameaçado. E tudo resultado da
falta de ética de outros profissionais que, trabalhando do outro lado do mundo,
representavam a mesma “marca corporativa”...
Estes acontecimentos mudaram para sempre a forma como
podemos olhar para a ética.
Problema que nos preocupa desde a alvorada da humanidade, já
Aristóteles definia Ética como “...a ciência prática do bem.”. Eis uma
definição particularmente feliz, uma vez que, pela sua simplicidade, é
facilmente entendível, e pela sua natureza operacional (ênfase na
vertente prática, do dia-a-dia) deixa claro desde logo que um padrão ético de
conduta é, na sua essência, uma opção individual e íntima, mesmo
que influenciada pelo quadro de referência cultural e social que nos envolve.
A ética surge assim como um saber prático, que visa
regular a nossa acção e o nosso modo de ser e estar em função de um conjunto de
valores e princípios morais, que teriam por fim último o alcance da felicidade
e do bem comum. A ética surge assim como uma peça fundamental do nosso processo
de tomada de decisão, definindo prioridades numa teia de interesses que as
situações e o meio envolvente nos criam.
Já Kant defendia uma enunciação geral de ética que o nosso
bom senso tantas vezes nos evidencia: trata com os outros da mesma forma que
gostarias que tratassem contigo. Puro bom senso, na verdade!
Curiosamente, aquilo a que assistimos é à aparente escassez
deste elementar bom senso no nosso quotidiano, ou pelo menos a uma “diversidade
aplicacional” difícil de entender: no emprego há quem declare uma ética que
procura praticar (pelo menos em frente aos chefes), havendo por vezes uma outra
ética para os clientes (pelo menos para os mais rentáveis...), e caindo-se por
vezes na tentação de tratar os concorrentes com total ausência de ética (porque
isso da ética é para os “nossos” e não para o “inimigo”).
Já em casa há quem tenha uma ética “privada”, menos exigente
face à declarada no emprego, que por sua vez é mais exigente que aquela que é praticada
com os amigos.
Fazendo parte das elites esclarecidas, há quem proclame
aos filhos uma ética exigente e inatacável (que se quer transmitir como valores
fundamentais, mas que muitas vezes é esquecida na prática, pelo exemplo). Fazendo
parte das classes menos instruídas, há quem seja muitas vezes mais
transparente, explicando desde cedo aos descendentes que aquilo que se faz
dentro de casa não é para comentar fora dela...
E porquê esta diversidade? Porque as nossas opções e os
nossos comportamentos dependem da solidez do nosso edifício moral, que é
construído ao longo da nossa vida, através das experiências que temos e da
educação que nos dão. Quanto mais sólidos os alicerces, mais firmes e
coerentes as opções que cada um de nós
toma nas mais diversas situações do nosso quotidiano.
Em síntese, poderíamos afirmar que Ética diz respeito a
valores e a princípios que visam a felicidade e o bem comum, os quais seriam
operacionalizáveis através de comportamentos concretos (aquilo a que alguns
chamam de Moral), ou seja, através da vivência dos valores éticos pelos Homens.
Então, se assim é, porque é que parece haver uma ética
social e outra empresarial? O imperativo ético não deveria ser geral e
universal? A ética não deveria ser uma ciência da acção total (e una) do homem?
É verdade que assim devia ser, e também é verdade que assim
não parece... Porquê? Porque muitas vezes ainda persiste a ideia de que lucro e
ética não são compatíveis!
II - Ética e lucro: serão mesmo incompatíveis?
Muitas vezes ouvimos frases como “... isso da ética é tudo
muito bonito, mas, na hora da verdade, o que prevalece é a busca do lucro e
nada mais interessa!” ou então como “... hoje em dia só se fala em ética porque
isso está na moda e dá dinheiro!”.
Mesmo que muitas vezes ditas com sinceridade, parecem-me
generalizações fáceis, e geralmente erradas no seu raciocínio de base.
Diz-nos o vulgar bom senso que um comportamento anti-ético
não compensa (pelo menos num contexto em que haja liberdade entre as partes).
De facto, a não ser por motivos externos ao indivíduo, ninguém, no seu perfeito
juízo se deixa prejudicar sistematicamente pelo mesmo interlocutor. Na melhor
das hipóteses, deixa-se prejudicar uma única vez, devido à sua boa fé e crença
na seriedade ou bondade do interlocutor. É o princípio inerente ao velho
ditado: “...à primeira qualquer cai, à segunda cai quem quer.”!
Assim, qualquer indivíduo ou organização, livres de optar,
votarão ao ostracismo quem com eles se comportar de forma pouco ética.
Poderemos por isso dizer que uma postura pouco ética pode compensar, gerando
benefícios no imediato (curto prazo), mas jamais compensará a médio ou longo
prazo.
É por isso que podemos concluir que os ambientes favoráveis
à liberdade de escolha (democracias e economias de mercado livre) são, por
definição, encorajadores da assunção de uma postura ética por parte de
indivíduos e organizações.
Esta conclusão parecerá polémica para aqueles que defendem
que a ética só prevalece por via da coacção, o que evidencia o “mau fundo” da
natureza humana. Esta linha de raciocínio baseia-se na constatação de que as
sociedades sentiram necessidade de criar sistemas normativos e reguladores da
vida em sociedade, bem como especificamente da actividade económica e das
trocas comerciais.
Só que este raciocínio peca por confundir ética com legalidade.
A primeira regula a nossa conduta, seja ela legal ou não. O normativo legal é
uma primeira framework de referência, geralmente usada para dirimir
disputas entre partes e interesses litigantes. É a primeira camada de regras,
que define como deveremos conviver em sociedade. Mas ninguém é feliz ou cresce
como ser moral apenas por cumprir a lei! É por isso necessária uma segunda
camada, que nos determine as decisões, pela sua justeza e benefício geral e não
apenas pelo mero enquadramento legal.
Muitas decisões, mesmo que inteiramente legais, são injustas
ou imorais. Quem nunca se sentiu vítima deste tipo de situação, num qualquer
momento da sua vida?
Prefiro acreditar que as pessoas agem por convicção ética em
geral, ou, na pior das hipóteses, porque o bom senso lhes diz que ganham mais
em ter uma postura ética do que em persistir na atitude contrária. Este
raciocínio enfatiza a recompensa social da postura ética e não
necessariamente o medo pela punição da postura não-ética.
Mesmo assim, algum cinismo instalado no mundo empresarial tenderá
a argumentar que as empresas só assumem preocupações de natureza ética,
deontológica, ambiental ou de responsabilidade social porque entendem que isso
lhes traz vantagem competitiva. Pode persistir o argumento de que os gestores
defendem essa postura na expectativa de maximizarem lucros, e não pela
evidência da justeza e primazia dos imperativos éticos per se.
... so what?
Clarifiquemos ideias: as empresas (como qualquer outro tipo
de organização) é feita de pessoas e para pessoas. Assim, as empresas têm de
ter uma finalidade social que justifique a sua existência. No limite, uma
empresa que seja inútil não sobrevive num mercado livre, porque não terá
clientes que comprem os seus produtos ou serviços.
Parece assim evidente que as empresas deverão servir um fim
último mais elevado do que o lucro (devem servir a sociedade), procurando
promover o bem comum e o desenvolvimento económico, através da geração de
emprego, da satisfação dos seus colaboradores, da satisfação dos seus clientes
com os produtos/serviços que vendem, dos seus accionistas (com o retorno que
geram do investimento feito) e mesmo dos fornecedores (que são igualmente um
parceiro a não descurar na cadeia de valor).
Aquilo que parece uma enunciação mais bonita que verdadeira,
é uma evidência que tem de ficar clara nas empresas que operam em mercados
livres: o seu fim último é garantir a satisfação dos seus stakeholders e
com isso contribuir para o desenvolvimento da sociedade onde se integram. Por
isso mesmo, uma empresa privada não pode deixar de ser por isso uma entidade
moral.
E então onde encaixa neste raciocínio o tão (mal) afamado
princípio/imperativo da rentabilidade/lucro?
É simples: o lucro, enquanto resultado positivo da
actividade económica desenvolvida, não constitui o fim último das organizações,
mas sim uma condição necessária e indispensável para a sua sobrevivência a
prazo. No entanto, o facto de ser uma condição necessária, não a torna na única
condição a cumprir. E é aí que a ética entra na vivência das organizações...
Ousaria inclusive afirmar que, procurando a empresa o
benefício e satisfação dos seus stakeholders, e sendo o lucro a expressão
de uma gestão adequada dos recursos colocados à sua disposição para o exercício
dessa mesma actividade, a procura do lucro transforma-se, por definição, num imperativo
ético das empresas.
E não pensemos que este é um argumento falaciosamente
desenvolvido para fundamentar a ética do lucro: este mesmo imperativo
ético existe em organizações sem fins lucrativos, sendo que em vez de lucro
falaremos de “gestão rigorosa” ou “combate ao desperdício”. O fundamento desta
lógica é que o desperdício ou mau uso de recursos destroem valor, pelo que
geram necessariamente menor benefício ou satisfação para os stakeholders.
E quem poderá dizer que isto não é eticamente reprovável?
Em conclusão, espero que os empresários e gestores deste
país tenham, desejavelmente, uma postura ética porque genuinamente acreditam
que estão a fazer o que está certo. No entanto, sinto-me profundamente feliz
por viver numa sociedade e num sistema económico que, por definição, encorajam
o assumir dessa postura aos que não se revêm nela, quanto mais não seja pelos
benefícios claros que a mesma traz.
Em bom rigor, não faço a mínima ideia se a Body Shop não faz
testes dos seus produtos em animais porque gosta deles ou porque acha que terá
mais clientes por causa disso. Mas o que me importa realmente é saber que na
sociedade em que vivo podem aparecer empresas que se afirmam e prosperam devido
a um posicionamento ético e socialmente responsável!
III – Business Ethics: cultura de regras ou uma regra para a vida?
Assumindo que a Ética é um imperativo nas empresas modernas
(por razões espiritualmente mais elevadas ou por razões mais economicistas),
importa perceber como é que a mesma se traduz no dia-a-dia das organizações.
O passo mais fácil (e muitas vezes o único que é dado) é
criar um Código Deontológico que enuncie os princípios éticos da organização e
regule a conduta desejada de todos os colaboradores.
Sendo fundamental para tornar claro o que devem ser as
linhas de conduta para todos os que trabalham na empresa, evitando equívocos e sub-culturas
éticas distintas, não me parece que seja no entanto o mais importante.
O que mais vemos em nosso redor são organizações que
proclamam fortes princípios éticos, mas que não os praticam no seu quotidiano.
Os valores morais são assim proclamados, mas não vividos. E isso
gera inevitavelmente a descrença e o descrédito.
Por outro lado, sistemas fortemente normativos e reguladores
da conduta profissional são potencialmente geradores de burocracia e
formalismo, desencorajando fortemente a tolerância ao erro e a abertura à
criatividade e inovação.
Isso não significa que devamos deixar cair a figura do
Código Ético (até pela forte carga simbólica que o mesmo possui). Devemos é
potenciar o seu uso e prática, tornando-o simples, facilmente memorizável e operacionalizável, de forma a
que seja uma ferramenta da nossa acção prática e não apenas um documento
formal.
Para isso, deve o mesmo proclamar acima de tudo princípios
e normas gerais, e nunca cair na tentação de regular todos os aspectos
da conduta profissional.
E porquê? Porque excessiva regulação cria rigidez
organizacional (por via da burocracia e do formalismo), além de partir do
princípio (errado) de que as pessoas ou são limitadas no seu discernimento ou “criativas”
na sua conduta moral (porque incapazes de interpretar princípios com razoabilidade
e justeza, de forma a fazer deles a melhor aplicação prática).
Se não deixarmos espaço para a livre tomada de decisões
em função do contexto em que os problemas se colocam, nunca teremos
organizações flexíveis o bastante para darem respostas adequadas e
inovadoras às exigências do mercado, em tempo considerado útil.
Numa multinacional, por exemplo, é comum existir um sólido
corpo de regras que visam gerir o risco operacional (tendo em conta a
complexidade das operações e interacções existentes numa organização
internacional) que se encontram normalmente publicadas e acessíveis a todos os
colaboradores, um Código de Ética
simples e claro e um conjunto de valores
corporativos geralmente divulgados
no momento de integração dos colaboradores.
Sendo esta a framework
de trabalho habitual numa multinacional, o espaço para a tomada de decisão não
deixa de existir, estando habitualmente definido na respectiva matriz de autorizações da organização,
de forma a ficar claro os limites de responsabilidade de cada interveniente,
uma vez que a livre tomada de decisões não pode deixar de implicar uma cultura de responsabilidade.
Assim, o primado dos princípios sobre as normas
parece assumir-se nos tempos que correm como um novo imperativo ético, que
coloca na atitude dos gestores a grande responsabilidade do seu
cumprimento efectivo. A liderança como modelo e exemplo de virtudes
éticas não é assim dissociável do discurso ético.
Por fim, uma reflexão final sobre uma afirmação muito em voga
nos dias de hoje sobre este tema:
“A Ética Empresarial implica que as organizações olhem
para as pessoas como fins em si mesmos e não como meros meios para se
alcançarem outros fins.”
Este princípio não poderia estar mais correcto, desde que o
mesmo seja assumido de forma bilateral...
Esta ressalva de princípio é necessária porque muitas
vezes se profere esta frase com um sentido que está claramente influenciado por
uma espécie de “visão marxista”, que assenta no pressuposto (também presente na
legislação laboral portuguesa) de que a parte mais fraca é sempre o trabalhador
e a parte mais forte (e, logo, potencialmente mal-intencionada) é sempre a
empresa.
Este vício de pensamento é no entanto contrariado muitas
vezes pela força dos factos...
É que tanto é verdade que a empresa pode olhar para os
colaboradores de forma meramente instrumental, tendo deles uma visão
redutora e meramente economicista (logo, não ética), como também pode o
colaborador ter da empresa uma visão meramente utilitarista, em que a encara
como um mero meio para obter o seu salário (seja lá de que forma for), o que é
igualmente amoral.
Basta lembrarmo-nos
de quantas empresas fecharam as portas em Portugal porque não aguentaram
sucessivas greves, de motivação meramente política... A Ética é algo a que
temos direito, sem dúvida, mas apenas se for também um dever de todos nós.
Hoje, o verdadeiro desafio que enfrentamos é o de ter a
sabedoria de construir um futuro que se quer cada vez mais ético, através
daquilo que se faz em todos os pequenos momentos do dia-a-dia.
Estar à altura do desafio é com cada um de nós...